Unicamp recebe acervo Geledés Instituto da Mulher Negra

Conjunto de documentos acumulados durante 33 anos registra vários aspectos da trajetória e luta de mulheres negras

O Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp recebeu no último dia 26 de junho o acervo Geledés Instituto da Mulher Negra, fundado em São Paulo em 1988 por um grupo de 10 mulheres. São elas: Sueli Carneiro, Solimar Carneiro, Sônia do Nascimento, Edna Roland, Maria Lúcia da Silva, Ana Maria da Silva, Deise Benedito, Elza Maria da Silva, Eufrosina de Oliveira e Lúcia Bernardes de Souza. Atualmente o Instituto é presidido por Antônia Quintão.

O acervo é composto por um conjunto de documentos acumulados durante 33 anos que registra vários aspectos das trajetórias e lutas de mulheres negras, com destaque para os temas saúde da mulher negra e direitos reprodutivos; machismo e violência doméstica; direitos humanos; educação; as articulações com outros movimentos de mulheres no Brasil e na diáspora; lutas por cidadania e direitos da população negra em geral. Além disso, nos documentos doados ao AEL, há a memória de importantes campanhas de informação e conscientização dos movimentos sociais e do Estado sobre o HIV/AIDS e anemia falciforme ao longo dos anos 1990, bem como, na mesma década, das edições da revista “Podecrê”, uma publicação que registrou o começo do movimento do rap e hip hop paulistano e no Brasil.
 
A coleção abrange produções textuais, boletins, correspondência, documentação de eventos, faixas, banners e centenas de cartazes. Por meio dos registros é possível compreender, por exemplo, as articulações para a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas ocorrida em Durban, África do Sul, em setembro de 2001, que teve grande impacto na formulação de políticas públicas de combate ao racismo no Brasil. Além da construção contemporânea de diferentes movimentos de mulheres negras protagonistas da luta antirracista no Brasil e no exterior. O acervo Geledés Instituto da Mulher Negra deve estar disponível para pesquisa já em 2022.
A incorporação do acervo à Unicamp é parte de um projeto mais amplo de preservação da memória negra coordenado pelos diretores do AEL, Aldair Rodrigues (do Departamento de História) e Mário Medeiros (do Departamento de Sociologia), em parceria com o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Social (CEBRAP Afro), liderado pela professora Márcia Lima (USP). O objetivo é preservar, digitalizar e difundir acervos das organizações negras brasileiras.

Parceria estratégica para maior visibilidade

O reitor da Unicamp Antonio José A. Meirelles, destaca a importância da iniciativa para possibilitar à comunidade acadêmica incorporar em sua agenda de pesquisa, de forma cada vez mais intensa, as questões associadas ao racismo e aos direitos humanos. “É com imensa alegria que nossa universidade incorpora este acervo. Parabenizo a Direção do AEL, professores Aldair e Mário, por esta iniciativa, com a expectativa de que ela seja a primeira de muitas outras na mesma direção. Sua importância não está caracterizada somente por dar continuidade, agora em termos da documentação acumulada por movimentos sociais, mas também a uma postura cada vez mais inclusiva de nossa universidade", destacou.

O reitor lembra que as políticas de ação afirmativa da Universidade focam tanto em elementos associados à entrada de estudantes de escolas públicas, de pretos e pardos e de indígenas quanto em políticas de permanência estudantil. Dessa forma, a meta é que a Unicamp reflita cada vez mais a diversidade existente na sociedade. "Iniciativas como esta do AEL fortalecem a base para que temáticas associadas à inclusão, ao racismo, à justiça étnico-racial e social tornem-se parte permanente da nossa formação de pessoas, de nossas pesquisas e de nossas atividades de extensão”, declarou.

Márcia Lima, da Afro Cebrap/USP acredita que esse projeto traz uma nova perspectiva sobre a memória da luta negra no país. Para Márcia Lima, dar maior visibilidade aos intelectuais e militantes negros assim como às suas organizações é um fator essencial para a consolidação da luta anti-racista. “Nesse momento, vivemos sob a égide do obscurantismo que trabalha justamente em prol do apagamento e da negação da história e da situação da população negra. Portanto, preservá-la é um forma poderosa de resistência.", afirma.

Sueli Carneiro e Suelaine Carneiro relatam que o acervo de Geledés chegar ao AEL/Unicamp significa que será iniciada uma nova história e se cumprirá uma nova tarefa política de subsidiar estudos de gerações de pesquisadores nos temas de nossa missão institucional. “A parceria reflete o cuidado, carinho e o compromisso de pessoas dedicadas à preservação da memória dos movimentos sociais, assim como, transferir os legados de nossas lutas para todes que são delas continuidade.”, declaram.

Preservação da memória negra

No contexto de implementação das ações afirmativas na Universidade, o acervo pode oferecer novas referências e visões de mundo para os alunos de graduação e pós-graduação, docentes e funcionários, além de fomentar pesquisas inéditas sobre as questões que marcaram as trajetórias das intelectuais do Geledés. Segundo Aldair Rodrigues, a documentação possibilita, por exemplo, recuperar e contar momentos decisivos da história da expansão da democracia no Brasil na perspectiva das mulheres negras que lutaram contra o racismo e o machismo, principalmente no período após a ditadura militar e constituição de 1988.

Mário Medeiros avalia que a importância da preservação da memória negra no Brasil, neste projeto, é uma forma de produzir conhecimento sobre experiências políticas e intelectuais que moldaram a cidadania brasileira, reivindicando e alargando o campo dos direitos civis, sociais e políticos. “Também é uma forma da universidade ser aliada do combate antirracista e salvaguardar esta memória num cenário de tanta violência contra a população negra”, analisa.

Taina Silva Santos, mestranda em História Social que atuou no projeto, foi integrante do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp entre 2014 e 2018 e participou do movimento pela implementação das cotas raciais na universidade, explica que “essa iniciativa é mais um passo importante para o avanço das ações afirmativas na universidade que já conta com um perfil diversificado de alunos, mas ainda precisa contemplar a produção intelectual das populações negras e indígenas nos currículos e na organização dos arquivos e centros de documentação.”

Silvia Santiago, professora da Faculdade de Ciências Médicas e dirigente da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp destaca a relevância de se desvelar vivências, interpretações e reestruturação das existências que permitiram seguir adiante e construir mundos mais acolhedores aos direitos de todos. “São documentos que nos mostram a contribuição com a discussão necessária sobe o racismo e seu enfrentamento e o entendimento do valor das vidas negras e a riqueza que significam no mundo.”, afirma.

O acervo, em sua opinião, aponta para questões da saúde da mulher, que muito interessam, mas também, questões de participação política, artística e toda a complexidade das ações em diferentes momentos da vida do país. “Precisamos estudar, aprender e ensinar a história dessas brasileiras e brasileiros que contribuíram para o que somos hoje. Fica um enorme agradecimento à generosidade do Geledés e ao empenho e compromisso dos professores Aldair Rodrigues e Mário Medeiros, que trazem para a Unicamp a oportunidade de mais conhecimento que nos guie na tarefa de continuar a construção de justiça e direitos para todos.”, declara.

O projeto atual segue nas trilhas das iniciativas precursoras dos docentes Lucilene Reginaldo, diretora associada do AEL entre 2014 e 2016, e Mário Medeiros que deram visibilidade às fontes do arquivo referentes à experiência negra no Brasil e na África. Posteriormente, entre 2017 e 2020, Lucilene Reginaldo, Mário Medeiros e Silvia Lara desenvolveram uma parceria pioneira com clubes negros do estado de São Paulo para organização e digitalização de seus acervos, no projeto financiado pela FAPESP e sediado no AEL, intitulado “As Cores da Cidadania: os clubes negros do estado de São Paulo (1897-1952”. Este último projeto buscou preservar documentos raros e produzir conhecimento sobre associações negras centenárias de São Carlos, Piracicaba, Sorocaba, Campinas, Batatais, Jundiaí e Rio Claro.

Fotografia: Aldair Rodrigues, Mário Medeiros e Taína S. Santos 

Publicado originalmente em Jornal da Unicamp (12/07/2021)

 

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